Boletim Informativo nº 146 | Março 2013

A Evolução dos Sistemas de Saneamento Básico em Portugal

Muitas têm sido as notícias, nos mais diversos órgãos de comunicação social, sobre as dívidas das Autarquias à empresa Águas de Portugal (AdP), sobre tarifários e sobre a necessidade de reestruturar o sector. O que tem vindo a ser realçado, tem sido,
fundamentalmente, o volume dessas dívidas, o que tem sido pouco analisado e divulgado são as causas que têm originado essas dívidas.

E elas são, certamente, muitas e de natureza diversa, desde questões de índole estritamente técnica a questões de natureza política (político-ideológica e/ou político-partidária), passando pelos modelos de gestão implementados.
Convém, no entanto, perceber a génese desta situação.

No caso português, as Autarquias detiveram, desde o início do século passado, de forma mais explícita, as competências nas áreas do Saneamento Básico (abastecimento de água, recolha e tratamento de águas residuais e recolha e tratamento de resíduos sólidos), através de um regime de comparticipações do Estado, muito pouco clarificado, tendo-se mantido mesmo depois de 1974. Só evoluiu para uma forma mais consistente com a publicação da Lei das Finanças Locais.

A partir daquela data, foi bastante mais notório e importante o papel das Autarquias, na melhoria dos índices de serviço destas infra-estruturas, até porque houve entrada de dinheiro para o sector, nomeadamente, através de um empréstimo vindo dos EUA.
Esta questão do saneamento básico, tornou-se, mesmo, para muitas Autarquias, a maior bandeira política da sua intervenção e governação nos concelhos.

Muito se investiu e consequentemente muito se fez, mas, também, em muitos casos, o aproveitamento desse investimento foi muito deficiente, principalmente quando analisamos, por exemplo, o que se passou com a operação e manutenção de algumas infra-estruturas, especialmente das estações de tratamento de águas residuais (ETAR). A 1ª geração destas infra-estruturas teve um aproveitamento muito pouco eficaz, por falta de uma gestão adequada, como consequência da falta de técnicos devidamente habilitados, mas também por falta de sensibilidade e empenho de muitos responsáveis. Fizeram-se as obras, mas descorou-se o seu funcionamento.
No caso dos resíduos sólidos urbanos, houve uma melhoria significativa nos sistemas de recolha, mas o destino final continuou, ainda durante muito tempo, a ser a lixeira a céu aberto, sem qualquer controlo do ponto de vista ambiental.

Em relação aos sistemas de abastecimento de água, embora se tivesse atingido um nível de cobertura bastante razoável, a questão da gestão foi também o grande problema.

Grande parte das origens de água eram subterrâneas, e sem grandes problemas de qualidade. Eram, no entanto, pouco fiáveis em termos de quantidade, pelo que sempre que vinha um período de seca, a situação tornava-se dramática, praticamente, por todo o País.

A gestão era muito pouco profissionalizada, na maioria, com pessoal com pouca ou nenhuma formação. Pouco se sabia dos volumes elevados, dos consumos e custos de energia e reagentes, e muito menos havia conhecimento das ineficiências das redes, ou seja conhecimento das perdas. No que se referia à qualidade, o controlo analítico era feito pelos serviços de saúde, mas pouco significado tinha para a gestão, como se confirmava pela contínua má qualidade bacteriológica em diversas redes por todo o País. Havia muito pouca sensibilidade para esta questão.

Em 1994, os níveis de atendimento eram de 82%, para os sistemas de abastecimento de água, e de 32% para os sistemas de drenagem e tratamento de águas residuais.
No período de 1994-1999, houve um dos maiores investimentos do sector, considerado mesmo um dos maiores da Europa, resultante da entrada das verbas comunitárias (II QCA). Mas uma avaliação feita no fim desse período ainda revelava aspectos como:

  • “ Mantém-se uma acentuada dispersão e multiplicidade de origens de água;
  • Subsistem ainda muitas origens que revelam problemas de quantidade e qualidade;
  • Verificam-se falhas generalizadas no que se refere ao abastecimento contínuo ao longo do dia;
  • Existem ainda problemas de qualidade num número significativo de concelhos;
  • Existem estações de tratamento de água (ETA) que não asseguram a produção de água com os requisitos de qualidade exigível;
  • Os volumes de perdas de água e os consumos não facturados situam-se acima dos 40%.
    Em relação aos sistemas das águas residuais, também se destacava o seguinte:
  • Verifica-se ainda um deficiente funcionamento de muitas infra-estruturas existentes, com destaque para as ETAR(s);
  • Muitas soluções de tratamento revelam-se desadequadas aos objectivos de qualidade do meio receptor;
  • Há um défice de pessoal especializado na operação e manutenção de sistemas.

É tendo em conta esta realidade, que em 1993, são publicados 2 diplomas, os Decreto-Lei nº 372/93, de 29 de Outubro e o Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de Novembro.

O primeiro apontava para «uma estratégia rigorosa que possibilitasse o aumento do grau de empresarialização no sector, incluindo capitais privados, e permita a aceleração do ritmo de investimento». Abria assim o sector a capitais privados sob a forma de concessão, possibilidade que havia sido vedada em 1977.

O segundo, consagrava o regime legal da gestão e exploração de sistemas que tivessem por objecto aquelas actividades. Introduzia-se assim a distinção entre sistemas multimunicipais e municipais, «considerando os primeiros como os sistemas em “alta” (a montante da distribuição de água ou a jusante da recolha de esgotos e sistemas de tratamento de resíduos sólidos), de importância estratégica, que abrangessem a área de pelo menos dois municípios e exigissem um investimento predominante do Estado, e os segundos todos os restantes».

De referir, no entanto, que esta não foi a primeira tentativa de aglomerar estes sistemas. A tentativa de criação das regiões de saneamento básico, também visava esse objectivo.

Em 1999, inicia-se a elaboração do Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR 2000-2006), que vem propor como modelo de intervenção a criação de sistemas plurimunicipais, com 2 variantes, sistemas multimunicipais e sistemas intermunicipais.

Pela mesma altura, é elaborado o Plano Estratégico dos Resíduos Sólidos Urbanos (PERSU), que leva à definição dum modelo de gestão, hoje implementado, em que a gestão do destino final e do tratamento é atribuído a um conjunto de empresas, actualmente pertencentes ao universo das Águas de Portugal, e que permitem uma gestão ambientalmente mais adequada, através da construção de um conjunto de unidades de tratamento, que vão desde o aterro sanitário, à compostagem e à incineração.

 

 

Ainda em relação ao abastecimento de água e saneamento, a implementação daquele PEAASAR, levou à constituição de um conjunto de Sistemas Multimunicipais, envolvendo vários municípios, que abrangiam apenas uma parte do País, mas que se constituíram praticamente só para gerir os sistemas em alta, ou seja, constituição de origens fiáveis, em qualidade e quantidade, o tratamento, e os sistemas de transporte, até ao armazenamento ou mesmo até às redes de distribuição. A distribuição continuou sob a gestão das Autarquias.

Não foi um processo fácil, pois se algumas Autarquias viam na proposta a via para a resolução dos seus problemas, neste sector, outras viam nele um processo que pretendia usurpar as suas competências.

Se o processo não foi fácil de implementar, muitas foram depois as dificuldades na interligação entre dois modelos de gestão muito diversos. O primeiro com uma gestão muito empresarial, muito profissionalizada, e o segundo, ou seja o da gestão das redes de distribuição, com os mesmos problemas elencados já em 1999. E isto porque nas Autarquias não se evoluiu praticamente nada nesta componente. As perdas continuaram a existir e até a aumentar, a operação e a manutenção continuaram a ser deficientes, a profissionalização do pessoal continuou a ser fraca. Mas como em tudo existem excepções, e aqui podem referir-se os casos em que existiam Serviços Municipalizados ou Empresas Municipais, e isto porque o modelo de gestão se aproximava mais do modelo empresarial.

A par disto, continuaram a existir muitas posições dissonantes, muitas delas apenas por questões de natureza política, outras por questões técnicas relacionadas com o património, com implicações diversas, entre as quais a eventual privatização do sector. Mas o facto de muitas Autarquias não terem na sua prática passada uma gestão, no mínimo, contabilística, que lhes permitisse conhecer os custos da gestão destes sistemas, e o passarem a ter, a partir de certa altura, um custo directo dos mesmos, contribuiu para o agravar da situação que hoje decorre.

O PEAASAR II, aprovado em 2006, pretendeu ultrapassar algumas das dificuldades existentes.

Pretendeu incluir a gestão das redes de distribuição, onde era, e é, necessário fazer também grandes investimentos, tal como foram feitos para a alta. Pretendeu ultrapassar a questão da privatização, com a criação de um modelo de parceria Estado Municípios, onde essa possibilidade ficasse bloqueada. Pretendeu reforçar os mecanismos de regulação, controlo e penalização.

No final do ano passado as dívidas das Autarquias ao grupo Águas de Portugal ascendia aos 390 milhões de euros, sendo que 20 dessas Autarquias devia mais de 4 milhões cada.

Mas no meio deste processo também existem Autarquias a reivindicar dívidas no sentido inverso.

A questão que não pode deixar de se colocar é a de como foi isto possível, e quais os factores que levaram a esta situação.
Se considerarmos que as autarquias deixaram de ter sob a sua responsabilidade os custos associados à captação, tratamento e adução e ao tratamento das águas residuais, (energia, reagentes, manutenção, etc.) como foi possível isto acontecer?
A questão tem-se centrado á volta do tarifário, considerando as autarquias que os valores cobrados pela AdP são bastante elevados. É certo que estas passaram a ter que pagar 2 tarifários, o da água de abastecimento e o das águas residuais.

Se em relação ao primeiro, as Autarquias vêm depois cobrar, ao consumidor, um tarifário definido, em muitos casos, com princípios de cariz social, no segundo caso o tarifário pretende ser compensado pela taxa de saneamento.

Sabe-se que da água recebida dos sistemas em alta, há autarquias, e são muitas, que não conseguem facturar mais do que 60 ou 70% do volume recebido e facturado.
Por outro lado, no que se refere às águas residuais, como as redes não são separativas, a componente pluvial que chega às ETAR(s), é muito elevada e não tem compensação nas taxas de saneamento.
Temos que, continuam a existir questões de fundo, estruturais, que contribuem para que as receitas das autarquias não sejam suficientes para pagar as facturas apresentadas pela AdP.

Mas também existem questões associadas ao modelo de gestão, já identificadas nos anos 90 do século passado, que continuaram a persistir, como o caso das perdas e dos volumes não facturados.

Uma coisa podemos constatar, e que é a melhoria das qualidade dos serviços. Em períodos de seca, como o do ano passado, não se verificaram grandes dificuldades de abastecimento. A qualidade da água tem hoje uma garantia que não se verificava no passado. Houve muitas e grandes melhorias ao nível dos impactes ambientais. Esta é uma realidade!

Existe, em Portugal, um Programa para o Uso Eficiente da Água (PNUEA), sobre o qual muito se tem falado, mas que tem tido muito pouca aplicação.

Sobre esta questão, de referir que, em 2010, o INAG lançou um projecto-piloto sobre o uso eficiente da água na rega dos espaços urbanos. Participaram cerca de 30 Autarquias, e na apresentação dos resultados, constatou-se que com a aplicação dos princípios do PNUEA, houve autarquias que reduziram em 50% o volume de água utilizada na rega dos espaços urbanos. Curiosamente, uma dessas autarquias faz parte do grupo dos 10 maiores devedores à AdP.

O que é que se tem feito para reduzir as perdas nas redes, e como se tem contabilizado os consumos não facturados (rega e outros)?

Dois aspectos têm vindo ultimamente a ser discutidos, o da reformulação dos tarifários e o da reestruturação das empresas do sector, com a criação de, apenas, 4 empresas, Águas do Norte, Águas do Centro Litoral, Águas de Lisboa e Vale do Tejo e Águas do Sul.

Se estes são, e com certeza, 2 aspectos primordiais para uma melhor gestão do sector, o que a seguir se exige é que se defina a estratégia para a redução das ineficiências existentes, como perdas, rega de espaços urbanos, etc., e que a convergência de tarifários não sirva só para a resolução do problema das dívidas.

Mas outra questão sobrevém a todo este processo, a da privatização do sector, aliás anunciado em devido tempo. Que a gestão dos serviços possa ser mais aberta, de modo a ganhar-se eficiência, pode ser um aspecto favorável dentro das exigências ambientais, de saúde e mesmo de natureza económica.

Porém, a Água é, foi e será sempre, um Bem Comum, indispensável à Vida. Isto mesmo, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. E isto, ninguém tem o direito de alienar!

Hemetério Monteiro

 

 

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