Contributo para a versão preliminar do estudo sobre a “Avaliação das disponibilidades hídricas por massa de água e aplicação do Índice de Escassez WEI+, visando complementar a avaliação do estado das massas de água”

A versão preliminar do estudo sobre as disponibilidades hídricas de Portugal continental é relevante para o planeamento da água em Portugal Continental, sendo um exercício complexo e de difícil desenvolvimento e, por isso, apenas agora foi apresentado. Este estudo visa suprir lacunas de informação relativo à quantificação espácio-temporal dos recursos hídricos, detetadas, essencialmente, desde o final do século XX e agravado durante o atual século, e permitirá efetuar o planeamento e uma gestão dos recursos hídricos, sustentado no conhecimento das características hidrológicas atuais do território português. Assim sendo, o estudo é de LOUVAR, pois irá apetrechar o Estado Português de uma ferramenta de apoio à tomada de decisão sobre os recursos hídricos para o século XXI.

Sem colocar em causa a bondade do estudo, pois não se conhece, em profundidade, os dados de suporte, as metodologias e as opções adotadas para conseguir obter uma caracterização apropriada à escala geográfica e aos objetivos, não é possível efetuar uma análise criteriosa e obrigatória da sua qualidade. A análise sintética recorreu à consulta dos dois documentos disponibilizados no portal participa (https://participa.pt/), designadamente um conjunto de notas (oito páginas) e uma apresentação powerpoint de 7 de dezembro de 2021 (61 slides).

As conclusões finais sobre o índice de escassez de água (WEI+), por região hidrográfica, são extremamente preocupantes, sendo que estas resultam da conjugação de quatro grandes estimativas (disponibilidades hídricas, consumos de água, volumes ambientais e volumes de retorno). Por outro lado, os valores dos índices apresentados são muito diferentes dos publicados pela Autoridade Nacional da Água (2016 e 2018), pelo que a sua alteração drástica deverá ser ponderada com cuidado (tabela abaixo). A serem comprovadas as conclusões do estudo, associado sempre evidentemente a incertezas, constata-se que não existe margem para novos licenciamentos dos recursos hídricos, a não ser nas Regiões Hidrográficas do Douro, Lima e Minho.

Bacias hidrográficas

WEI+ (%)

PNA (2016)

WEI+ (%)

PGRH (2016)

WEI+ (%)

ENAAC (2018)

WEI+ (%)

Estudo 2021 (7/12/2021)

Minho 4 3 3 Sem Escassez (< 10)
Lima 7 4 5 10
Cávado 8 10 11 30-40
Ave 16 17 17 50-60
Douro 11 8 7 10
Vouga 18 8 6 40-50
Mondego 13 10 11 10-20
Lis 9 9 15 30-40
Ribeira de Oeste 33 38 26 50-60
Tejo 22 19 16 30-40
Sado 27 36 27 60-70
Mira 14 33 25 80-90
Guadiana 22 25 23 50-60
Ribeiras do Algarve 32 27 18 50-60
Portugal Continental 16 14 12  

Legenda: WEI+<10% (sem escassez); WEI+ entre 10% a 20% (escassez baixa); WEI+ entre 20% a 30% (escassez moderada); WEI+ entre 30% a 50% (escassez elevada); WEI+ entre 50% a 70% (escassez severa); WEI+ superior a 70% (escassez extrema).

Como tal, urge e é pertinente validar e efetuar uma discussão das estimativas das disponibilidades hídricas (superficiais e subterrâneas), das estimativas dos volumes ambientais, das estimativas das necessidades de água, para os vários tipos de usos, e dos volumes de retorno, que permitirão uma verificação da adequabilidade dos resultados à realidade.

Será interessante, de forma a melhor sustentar as conclusões do estudo, avaliar o potencial impacto das lacunas de informação, algumas assumidas no estudo, na avaliação das disponibilidades hídricas (superficiais e subterrâneas), que podem influenciar os resultados e validar junto dos vários setores económicos as estimativas de consumos de água. Assim, considerar que:

  • O suprimento de lacunas de informação e a correções no processo de cálculo dos consumos de água e das disponibilidades hídricas (e.g. a representação espacial das variáveis climáticas por IDW pode não refletir a realidade ao nível local), deverão permitir a reavaliação dos resultados obtidos no estudo.
  • Os setores económicos (agricultura, indústria, abastecimento público, turismo e energia) têm um papel importantíssimo na utilização e na adoção de medidas relacionadas com a utilização dos recursos hídricos e, portanto, deverão ser devidamente auscultados, de forma a serem parte da solução e não do problema (permitir que se pronunciem e que haja abertura para acolher as sugestões ou proposta apresentadas, suportadas no conhecimento técnico e da realidade local).
  • As estimativas dos volumes de água para a rega basearam-se, fundamentalmente, nas dotações de rega de referência da Ação 7.5, calculadas por aplicação da metodologia da FAO (Allen et al., 1998) para uma série histórica. Posteriormente, selecionado o valor para o qual as necessidades de rega líquidas têm uma probabilidade de 80% de o mesmo não ser excedido, o que corresponde um ano seco. Como tal, estas dotações não são aplicáveis ao estudo das disponibilidades hídricas.

Com alguma surpresa o índice de escassez de água associado à Região Hidrográfica 4- Vouga está na classe de escassez elevada. Nesta região os recursos hídricos superficiais e subterrâneos têm sido considerados abundantes, pois nesta região é frequente a ocorrência de cheias e grandes recargas, que resultam da exposição desta região a fenómenos meteorológicas associadas às precipitações, da configuração da região hidrográfica e da orografia, que potenciam a ocorrência de precipitações intensas (serra do Caramulo). Assim, julga-se que poderá, nesta região, existir algum problema na representatividade da precipitação, da evapotranspiração potencial e real, da recarga ou, eventualmente, dos consumos de água para os vários usos.

Atendendo aos índices de escassez hídrica (WEI+), as bacias hidrográficas do Cávado e do Lis estão em escassez elevada, mas esta avaliação não tem confirmação regional, visto não haver registo de restrições hídricas, nem medidas para controlo dos consumos de água, associadas às atividades económicas e exigências ambientais. Na bacia do rio Lis não poderá ser desprezado os contributos significativos das águas subterrâneas.

É importante avaliar e verificar as estimativas das disponibilidades hídricas subterrâneas (recarga mensal), que terão impacto significativo no índice de Escassez Hídrica (WEI+). Este aspeto é particularmente relevante uma vez que os recursos subterrâneos são considerados reservas estratégicas, a utilizar para acudir aos períodos de escassez hídrica.

O modelo subterrâneo do estudo foi calibrado com o recurso a outro modelo (este suportado num maior número de parâmetros descritores da descarga, modelo desenvolvido pelo ISEP/APA). Contudo a fiabilidade deverá estar suportada na comparação com valores reais/monitorizados com adequada abrangência temporal e espacial. Portanto, a comparação será válida se o modelo mais complexo ou completo (ISEP) tiver sido devidamente calibrado para os vários sistemas aquíferos, pois no caso contrário os resultados não serão fiáveis.

Os índices de escassez apresentados neste estudo condicionam seguramente a estratégia seguida nos últimos anos pelo país na sua aposta em energias renováveis e na descarbonização da sociedade. No futuro qualquer processo de decisão baseada neste estudo deverá ter em conta a incerteza inerente e a falta de validação e calibração, quer com as realidades locais quer com outras fontes de informação e estudos precedentes.

As notas disponibilizadas para participação refere “o estudo realizado, em articulação com o meio científico e com a participação dos melhores especialistas nacionais, utilizou a melhor informação disponível, articulando-se com diferentes entidades e garantido desde logo a ligação aos estudos, que estão a ser também realizados pela APA, relativos ao Roteiro Nacional para a Adaptação 2100.“ Todavia, o estudo surge com surpresa para a área científica e para os organismos do Estado responsáveis pela agricultura, havendo, dúvidas sobre a melhor informação disponível.

Em síntese, regista-se a importância do conhecimento fundamentado sobre os recursos hídricos nacionais como condição para a sua boa gestão e preservação, para o qual o estudo é um contributo significativo. Porém, realça-se que a avaliação das disponibilidades hídricas e do estado das massas de água é um processo complexo, dependente de várias incertezas, implicando, por primado de transparência e eficácia, o maior envolvimento possível das múltiplas entidades interessadas e com responsabilidade no uso e conservação da água.

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