Boletim Informativo nº 144 | Outubro 2011

Editorial

A extinção da Direcção Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos em 1987 assinalou uma tentativa de ruptura com a filosofia de governação até então predominante no desenvolvimento das políticas públicas da água em Portugal: o paradigma hidráulico enquanto expressão do aproveitamento económico dos recursos hídricos nacionais através de programas de infra-estruturação do território hídrico nacional (portos, hidráulica agrícola, barragens, etc.) fomentados e comparticipados pelo Estado.

Em alternativa, apresentavam-se, então, não só os desígnios essenciais das políticas públicas de ambiente afirmados com a publicação da Lei de Bases do Ambiente e com a criação do Ministério do Plano e da Administração do Território nesse mesmo ano, mas também o conceito de planeamento e gestão integrados das águas, introduzido em Portugal por mérito e inovação da obra seminal coordenada por Luís Veiga da Cunha, publicada pela primeira vez em 1974 e reeditada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1980.

As rupturas e mudanças de paradigmas políticos e de políticas públicas, contudo, não são processos fáceis, rápidos ou lineares. Neste caso em particular, a transição desejada nem sempre encontrou reflexo na capacidade de orientar processos políticos, de modificar o funcionamento das instituições e, de forma ainda mais significativa, de articular uma determinada visão técnico-científica com os constrangimentos inerentes aos processos de tomada de decisão política e à implementação de políticas públicas.

Ao longo deste percurso a comunidade técnico-científica consolidou-se, afirmando a sua competência e promovendo uma visão de utilização e gestão sustentável das águas, mas o desenho institucional subjacente a este domínio de governação raramente foi consensual entre políticos e membros da comunidade técnico-científica, sendo sujeito a variações sucessivas e demonstrando dificuldades significativas no desenvolvimento das suas atribuições. 
Com a passagem do milénio criaram-se expectativas renovadas relativamente à capacidade de instituir o paradigma de planeamento e gestão integrados das águas em Portugal: a Directiva Quadro da Água apresentava-o como requisito essencial em todos os Estados-membros e a publicação da Lei da Água em 2005 equacionava um modelo institucional aparentemente consensual, cuja implementação se iniciou em 2008, e que afirmava um quadro institucional exclusivamente dedicado às questões hídricas.

Nesse mesmo ano, contudo, observa-se o primeiro acto de uma crise financeira global que rapidamente se transformou nas crises de dívida pública e da economia que vivemos actualmente. De forma repentina, o modelo de políticas públicas da água desenhado em 2005 foi questionado politicamente, tendo sido recentemente afirmada a sua reestruturação por iniciativa do XIX Governo Constitucional.

O desafio actual é enorme. Se os motivos de reestruturação enunciados na década de 1980 representavam a afirmação de uma filosofia de governação ambiental, e a entrada do país na Europa Comunitária fazia antever uma disponibilidade financeira muito significativa para investir em novas orientações e projectos de políticas públicas, a situação presente é a inversa: o motivo enunciado para justificar a reestruturação em curso é aparentemente financeiro, e a situação de ruptura financeira em que se encontra o país (e a conjuntura económica e financeira do espaço europeu) apresenta-se como condicionante estrutural que dificilmente será superada nos tempos próximos. 

Face a situações de ruptura e crise, haverá sempre quem adopte uma visão negativa e quem pense no seu potencial de transformação e inovação. Olhando para a actual conjuntura por este segundo prisma, avançamos duas questões estruturantes e uma afirmação de princípio relativamente à definição de uma nova filosofia de governação cujo debate alargado e fundamentado consideramos essencial desenvolver no presente e no futuro.

 


 

 

 

 

 

A primeira questão diz respeito à necessidade de pensar a análise de políticas públicas como questão científica de natureza transdisciplinar, essencial à articulação entre a comunidade política e a comunidade científica no desenho, implementação e monitorização de políticas públicas. Se o planeamento e gestão integrados das águas são um pressuposto essencial a este domínio de governação, o estudo sistemático e comparativo de modelos institucionais e dos processos inerentes à sua efectiva implementação raramente é sujeito a análise regular em Portugal.
Não só porque não se investe na formulação e implementação de indicadores de políticas públicas, porque as instituições não têm uma cultura de prestação de contas ou porque a própria comunidade científica tem dificuldade em compatibilizar os actuais ‘critérios de avaliação científica’ com a produção de conhecimento útil ao desenvolvimento de políticas públicas, mas também porque este tipo de análise não tem tradição em Portugal e disciplinas como a economia, a ciência política, o direito, a sociologia, a psicologia social, o estudo das organizações, entre outras essenciais a este desígnio, continuam a ser vistas como contributos acessórios ou exóticos.

Uma segunda, necessariamente ligada à primeira, diz respeito à persistência de um modelo de governação em que a administração central, com maior ou menor grau de desconcentração regional, concentra o exclusivo das funções de gestão e planeamento integrados das águas, acentuando a natureza administrativista, hierarquizada e burocrática das políticas públicas da água em Portugal.

Esta lógica não produziu os efeitos desejados no passado e apresenta-se frequentemente como problema e não como solução para os problemas que pretende resolver: os atrasos sucessivos no exercício das funções de planeamento, a incapacidade de implementação dos planos, a deficiente articulação e coordenação entre entidades públicas ou domínios de governação, a falta de competências e de recursos humanos qualificados em número adequado, a ineficiência de mecanismos de fiscalização, a falta de agilidade das instituições no exercício das suas atribuições e a inexistência de indicadores de monitorização são alguns dos exemplos tipicamente referenciados como problemáticos.

Neste sentido, torna-se essencial pensar uma nova filosofia de governação que, fundamentada na análise do histórico recente das políticas públicas da água, e garantido que essa análise seja desenvolvida em permanência no futuro, seja capaz de promover a excelência, a inovação, a eficiência, a equidade e a sustentabilidade. Na prática, trata-se de criar mecanismos capazes de incentivar a promoção destes valores, abandonando-se a lógica restritiva / punitiva das políticas ambientais das décadas de 1970 e 1980 (relembre-se, a título de exemplo, o artigo 26º da Lei de Bases do Ambiente - ‘proibição de poluir’), cujos valores subjacentes já estão amplamente disseminados e assimilados, e premiar entidades (públicas, privadas, ONG e terceiro sector, etc.) que demonstrem capacidade e competência de desempenho na concretização dos valores enunciados, assumindo uma lógica positiva e não restritiva.

Este é um desígnio essencial cujos contornos valorativos e possibilidades de implementação prática devem ser discutidos com rigor e devida fundamentação, e pressupõem uma lógica de inovação política, governativa e de políticas públicas. 

João Pato
Comissão Directiva da APRH

 

 

 

 

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