Boletim Informativo nº 144 | Outubro 2011

Um retrocesso lamentável

Os aspectos centrais das mudanças anunciadas no sector dos recursos hídricos são a extinção das ARH’s enquanto institutos públicos de âmbito regional, dotados de autonomia administrativa e financeira, e a integração do Fundo de Protecção de Recursos Hídricos num anódino fundo genérico da APA. Penso que estas medidas são incompreensíveis e desastrosas para o sector e que quem as adopta não tem verdadeira consciência do dano que vai causar ao Pais.

As ARH’s estão previstas na Lei da Água, aprovada em Dezembro de 2005 e iniciaram a sua actividade em Outubro de 2008, apenas há três anos. Não são o resultado de um capricho efémero nem foram adoptadas de ânimo leve. Resultam de uma reflexão de muitos anos em que a APRH desempenhou um papel essencial. A grande generalidade dos especialistas do sector defendeu a sua criação em linha, aliás, com as recomendações das organizações internacionais. A DQA não exige a sua criação mas, assumidamente, ganha mais sentido e eficácia com a sua existência. Um estudo recente da OCDE põe em evidência o papel essencial que os organismos de bacia têm para dar coerência territorial às politicas da água que são, inevitavelmente, participadas por muitas entidades e por muitos sectores. Acresce que as ARH’s não precisam de um cêntimo que seja de transferência do Orçamento de Estado porque são auto-suficientes e sustentáveis financeiramente. Pelo contrário, a sua extinção, além de prejudicar a eficácia de uma gestão de proximidade, vai fazer diminuir a capacidade de cobrar a Taxa de Recursos Hídricos (TRH) e, portanto, fazer diminuir a receita do Estado.

A todas estas razões, suficientes para mostrar o enorme retrocesso que se vai impor ao Pais, acrescem circunstâncias politicas que tornam esta decisão verdadeiramente incompreensível. A Lei da Água foi pormenorizadamente negociada durante vários meses entre os Grupos Parlamentares dos partidos que a votaram favoravelmente: o PS, o PSD e o CDS-PP! Aliás, a proposta de Lei submetida à Assembleia da República continha já contributos destes vários partidos porquanto tinha tido génese em 2000 num governo PS e tinha sido objecto entre 2002 e 2005 da atenção de três ministros do PSD e de um do CDS. Pretendia-se uma lei de regime que viesse finalmente trazer estabilidade e modernidade ao sector e, por isso, foi posto tanto empenho em que a Lei da Água fosse, como foi, aprovada por cerca de 90% dos deputados. É esse esforço de estabilidade e consenso que o Governo se propõe alterar agora por mero Decreto-Lei.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As politicas da água ganham eficácia quando se tornam políticas de proximidade. A dimensão territorial dessas políticas é cada vez mais evidente dado que é no espaço físico das bacias hidrográficas que todas as políticas sectoriais se projectam e que os conflitos se apresentam e se dirimem. A proximidade aos utilizadores concretos da água e ao Poder Local é essencial para resolver de forma positiva os dilemas da gestão dos recursos e ganhar credibilidade. Só neste contexto de proximidade se torna socialmente compreensível e aceitável a Taxa de Recursos Hídricos. O retorno dos montantes cobrados deve ser evidente e gerido tanto quanto possível localmente. A TRH não é um novo imposto e é desta forma que foi consensualizado com os sectores utilizadores da água e aprovado na AR. A sua cobrança por uma entidade de Lisboa e a sua integração num fundo genérico perde toda a credibilidade e, mais cedo do que tarde, perde exequibilidade. Este é também um retrocesso lamentável num país que precisa de se preparar para o pós-fundos comunitários e construir politicas intrinsecamente sustentáveis.

Muitos, mesmo muitos, outros argumentos podem ser aduzidos. Custa ver destruir em poucos meses o que o Pais construiu em vários anos com o contributo de muitos, incluindo dos partidos que estão no Governo. Custa também perceber que por de trás desta decisão não há propriamente uma alternativa ou um “modelo” mas simplesmente um considerável desconhecimento da história do sector em Portugal e no mundo. Com efeito, por vezes a ignorância é pior do que a maldade.

Francisco Nunes Correia,
Professor Catedrático do IST, Ministro do Ambiente de 2005 a 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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