Artigo de opinião

As centrais hidroelétricas e a fauna piscícola: impactos, medidas de mitigação e diretrizes para uma atuação conjunta

Comissão Especializada da Qualidade da Água e dos Ecossistemas

A estratégia europeia para adaptação às alterações climáticas, expressa no Pacto Ecológico Europeu, tem o objetivo de alcançar uma Europa com impacto neutro no clima até 2050. Este fator, alinhado com a interrupção no fornecimento de gás à Europa por parte da Rússia como resultado da guerra na Ucrânia e o aumento previsto no consumo energético, vem reforçar e acelerar a necessidade da transição energética, através de um aumento na produção por fontes de energia renováveis. A energia hidroelétrica é das mais atrativas, porque dá origem a quantidades reduzidas de gases com efeito de estufa, e a sua capacidade de armazenamento permite complementar outras fontes de energia renovável intermitentes, i.e. eólica e solar, dependentes das condições climatéricas locais.  

A energia hidroelétrica, apesar de ser renovável, não está isenta de causar impactos no ecossistema, em especial na fauna piscícola, devido à construção de obras fluviais transversais (figura 1). Alterações na distribuição e disponibilidade de habitas, perda da conectividade longitudinal pelo bloqueio à migração e movimentação dos peixes, e mortalidade dos peixes nas turbinas, são alguns dos impactos a salientar. Isso pode resultar em mudanças significativas a diferentes níveis, desde o individual, através de ajustes fisiológicos e comportamentais dos peixes, até aos níveis da população e da comunidade, podendo levar à extinção de espécies já fortemente ameaçadas.

Figura 1 – Aproveitamento hidroelétrico do Alto Lindoso no rio Lima. ©José M. Santos

As espécies piscícolas foram selecionadas naturalmente para estarem adaptadas à magnitude, frequência e previsibilidade dos caudais naturais de um rio, incluindo os caudais de cheia e da época estival. No entanto, a ocorrência destas variações de caudal com uma frequência elevada e de grande magnitude a jusante das centrais hidroelétricas (hidropicos) como resultado da produção hidroelétrica, torna o habitat muito instável e imprevisível. Em resposta a esta restrição, os peixes exibem alterações de comportamento seguidas de alterações fisiológicas. Este comportamento individual segue uma via neuroendócrina, que visa restaurar o estado homeostático após a perceção de qualquer estímulo que o ameaça. Em casos em que esta ameaça persista no tempo, é previsível que os efeitos adversos sobre o comportamento geral dos peixes (e.g. encontrar refúgio) e em estágios específicos do ciclo de vida (reprodução e crescimento) sucedam.

Durante as últimas décadas, a investigação sobre hidropicos tem tido um crescimento exponencial, destacando a importância desta temática. O encalhamento dos peixes nas margens devido à súbita paragem das turbinas (figura 2), ou o deslocamento dos peixes para jusante são alguns dos impactos mais estudados. Dada a sua relevância, em países como a Áustria e a Suíça, onde a maioria das centrais hidroelétricas operam em hidropicos (centrais alpinas com grande altura de queda), possuem uma legislação apertada sobre a forma como estas centrais podem operar, limitando, por exemplo, a velocidade de fechamento das turbinas (i.e. downramping rate).

Em Portugal, o conhecimento dos impactos dos hidropicos na fauna piscícola é ainda incipiente. No entanto, já existe evidência clara de que existe um efeito ao nível do comportamento e ao nível fisiológico dos peixes. Resultados de trabalhos de investigação com recurso a telemetria indicaram que, durante os hidropicos, a atividade do barbo-comum (Luciobarbus bocagei) diminuiu, mostrando um comportamento de procura por refúgio. Barbos que habitavam os rios regulados exibiam home ranges (áreas de habitat usado) maiores e mais uniformes, em oposição às áreas menores e irregulares usadas pelos peixes que habitavam o rio não regulado. Estudos em laboratório, num canal artificial, indicaram que durante a subida rápida de caudal foram desencadeadas respostas ao stress traduzidas num aumento significativo de glicose no sangue dos barbos. Os peixes mostraram ainda tendência para procurar refúgios por forma a evitar as zonas de elevada corrente.

Figura 2 - Barbo comum encalhado durante uma descida repentina de caudal devido ao fechamento das turbinas a jusante da central hidroelétrica de Salamonde, Gerês, 16 de junho de 2019. ©Isabel Boavida

Existem atualmente dois tipos de medidas de mitigação em relação aos efeitos dos hidropicos: diretas e indiretas. Medidas diretas incluem i) medidas estruturais como a construção de uma bacia de retenção que permite reter o hidropico e suavizar a libertação de caudal para jusante, e ii) medidas operacionais que envolvem a adaptação do esquema de produção por forma a reduzir os impactos da subida e descida repentina de caudais. Medidas indiretas incluem ações de requalificação do habitat dos peixes a jusante das centrais. No entanto, a sua aplicação em Portugal é ainda muito reduzida, e por isso mantém-se o desafio de estimar e prever o seu benefício ecológico. No presente ano, foi instalado um protótipo a jusante das centrais hidroelétricas do Bragado e de Covas do Barroso de uma medida indireta, um refúgio de corrente (figura 3), que estão atualmente a ser monitorizados, em contínuo, por câmaras subaquáticas. Os resultados preliminares são promissores.

No âmbito do projeto europeu FIThydro, foi desenvolvida uma ferramenta, a Hydropeaking tool, que permite avaliar o impacto de uma central hidroelétrica na fauna piscícola, através da quantificação de variáveis físicas que traduzem o modo de operação da central, e através da avaliação do estado de vulnerabilidade do ecossistema. A ferramenta foi desenvolvida na Noruega para espécies salmonícolas, e posteriormente adaptada às espécies e rios ibéricos e, por conseguinte, representa uma valiosa ferramenta para avaliação do impacto, podendo ser usada no apoio à decisão no licenciamento de novas infraestruturas e no requerimento de novas licenças.

Dada a importância dos hidropicos e das suas implicações ecológicas e socioeconómicas, a sua mitigação requer uma abordagem inter e transdisciplinar. Nessa ótica, foi criada uma rede interdisciplinar, a HyPeak network com o objetivo de promover iniciativas internacionais de investigação, apoiar o desenvolvimento da energia hidroelétrica de uma forma sustentável, e fornecer aconselhamento especializado no tema.

Figura 3 - Imagem subaquática de um escalo do Norte (Squalius carolitertii) ibérico a entrar num refúgio de corrente instalado a jusante da central hidroelétrica de Covas do Barroso. Fonte: projeto EcoPeak4Fish ©Maria João Costa

Para implementar estas medidas de mitigação e para que sejam criados mecanismos que visem limitar os impactos dos hidropicos, é necessário que se reconheça a importância da energia hidroelétrica na adaptação climática, e a importância que a biodiversidade representa para o futuro. A abordagem a estas questões deve ser integrada e incluir na tomada de decisões tanto os critérios de produção de energia como os de biodiversidade. Isto é válido tanto no desenvolvimento de novos projetos, como na manutenção dos projetos já existentes. O custo-benefício das medidas de mitigação a adotar deve ser avaliado em conjunto e a sua implementação deve ser monitorizada, sem prejuízo de que estas medidas sejam revistas se o seu benefício for posto em causa. Adicionalmente, a partilha destes dados por parte dos gestores é essencial para avançarmos no conhecimento sobre os impactos das centrais hidroelétricas na fauna piscícola, por forma a delinear estratégias mais promissores na mitigação desses impactos.

Importa ainda referir, que equipamentos obsoletos e abandonados (figura 4) devem ser retirados dos cursos de água, para desta forma reconstituir a conectividade longitudinal e assim cumprir com a estratégia para a Biodiversidade e com a recente aprovada Lei do Restauro da Natureza que prevê a eliminação das barreiras fluviais para que, pelo menos, 25 000 km de rios na Europa passem a ser rios sem barreiras até 2030. Atualmente existem diferentes mecanismos que financiam essas ações.

Figura 4 - Central hidroelétrica desativada da Foz do Sousa, não possuindo qualquer função socioeconómica; a sua demolição, prevista em Despacho nº15/MAMB/2016, traria benefícios aos serviços de ecossistemas contribuindo para a reposição das características dos sistemas fluviais, dos habitats aquáticos e ribeirinhos. ©Isabel Boavida
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