O planeamento da zona costeira em Portugal continental: uma reflexão crítica sobre a adaptação às alterações climáticas

 

Portugal continental tem enfrentado crescentes desafios para fazer face à vulnerabilidade das suas zonas costeiras às crescentes ameaças a que estão sujeitas, incluindo a subida do nível médio da água do mar, que potencia o aumento da taxa de erosão da linha de costa, e o número e intensidade dos fenómenos de galgamento e inundação durante eventos marítimos extremos. Paralelamente, as zonas costeiras registam uma persistente concentração de atividades humanas, bens e serviços com valor económico e social relevante.

A necessidade de proteção da zona costeira tem estimulado a adoção de diversos tipos de decisões públicas e privadas tendo em vista a preservação das suas funções e dos serviços providenciados e a minimização de riscos para pessoas e bens. Entre elas merece especial destaque o sistema de planeamento da zona costeira, suportado por uma abordagem integrada (Estratégia Nacional de Gestão Integrada das Zonas Costeiras, ENGIZC, 2009). Este sistema inclui os planos de gestão costeira que se constituem como instrumentos de apoio à decisão para melhorar a preservação, proteção e utilização das zonas costeiras, reduzir conflitos e contribuir para convergir as intervenções, públicas ou privadas, capazes de assegurar princípios de sustentabilidade e resiliência. Estes planos, recentemente designados por Programas da Orla Costeira (POC) por força da nova Lei de Bases do Ordenamento do Território (Lei 31/2014 de 30 de Maio), do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei 80/2015 de 14 de Maio e subsequentes alterações legislativas), dividem agora a costa em seis troços: Norte, Centro, Tejo e Oeste, Alentejo, Algarve (Odeceixe-Vilamoura) e Algarve (Vilamoura-Vila Real de Santo António). A sua implementação é concretizada nos termos do Regime Jurídico dos planos de orla costeira (Decreto-Lei 159/2012 de 24 de Julho). Esta reformulação legislativa veio fazer cair o carácter regulamentar dos planos e obrigar à inclusão das normas resultantes destes planos nos regulamentos dos Planos Diretores Municipais.

Adicionalmente aos planos acima referidos, o sistema de planeamento das zonas costeiras português prevê também a elaboração de programas de estuário cujo processo de elaboração está previsto no regime jurídico dos planos de ordenamento de estuários (Decreto-Lei 129/2008, de 21 de Julho), mas que até hoje não foram adotados. Embora os atuais POC abranjam a totalidade da linha de costa, deixam de fora o planeamento de territórios localizados no interior das zonas estuarinas, também vulneráveis aos efeitos erosivos ou de inundação pela água do mar e onde é frequente coexistirem elevados valores naturais, económicos e sociais, que assim permanecem desguarnecidos pelo atual sistema de planeamento.

Trata-se de um sistema de planeamento essencialmente centralizado na Agência Portuguesa do Ambiente. Embora esteja garantida na lei a participação de diversas entidades e interessados nos processos de elaboração e implementação, a prática tem mostrado que o envolvimento externo é relativamente reduzido face à diversidade e gravidade dos conflitos que persistem nestas zonas. No primeiro ciclo de planeamento as estratégias de intervenção preconizadas foram dominadas por abordagens reativas e de mitigação dos problemas, nomeadamente através da instalação de infraestruturas de proteção costeira, de transferência de sedimentos ou realimentação de praias. A relocalização de atividades e os meios de adaptação às alterações climáticas foram muito pontualmente equacionados. Estas intervenções têm implicado elevados custos para o erário público. A sua diferente eficácia e distribuição entre diferentes zonas do território tem também suscitado questões sobre a relação custo-eficácia e a justiça regional e geracional.

Os cenários de previsão de evolução das alterações climáticas e os efeitos sobre a zona costeira portuguesa, contudo, têm exortado à adoção de estratégias de planeamento adaptativas capazes de fazer face aos riscos crescentes e à ameaça de pessoas e bens. No entanto, apesar da intenção de adotar uma nova abordagem adaptativa nas zonas costeiras, estudos recentes mostram que na atual geração de POC não foi aplicada uma verdadeira abordagem metodológica de planeamento adaptativo, pelo menos naqueles que cobrem as duas principais cidades portuárias portuguesas de Lisboa e Porto (Valente, 2021). Apesar dos esforços e do investimento em monitorização, que espelham os sucessos e insucessos do planeamento das zonas costeiras, tem faltado uma visão transformadora aos POC, que permanecem mais dominados pelas escalas e componentes urbanísticas e menos pela formulação coletiva, e efetiva, de soluções integradas e custos equilibrados numa perspetiva interregional e intergeracional.

A expectável severidade do impacto da evolução das alterações climáticas na zona costeira continental portuguesa e a persistente concentração de atividades humanas nestes territórios clama pela revisitação do nosso ‘sistema integrado de planeamento das zonas costeiras’. Esta deverá desenvolver-se no âmbito de um processo participado e cocriativo, que garanta a identificação de abordagens multidisciplinares multicritério e que convoque a decisões devidamente articuladas entre os diversos níveis e setores do país e assegure a adoção de soluções baseadas, sempre que possível, na natureza, sustentáveis e resilientes.

Referências:

Estratégia Nacional de Gestão Integrada das Zonas Costeiras, ENGIZC, Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2009 de 8 de Setembro de 2009.

Valente, S. (2021) Adaptive Planning for Coastal Climate Adaptation in Port-Cities: Integrating Adaptation Pathways into Planning Instruments, Tese de Doutoramento, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

Janeiro 2022

[i] Texto produzido pela CEZCM – 20/01/2022 – relatores: Teresa Fidélis, Óscar Ferreira, Paulo Rosa-Santos e Filipa Oliveira

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